São Paulo — A trajetória da paulistana Patrícia Lucas, de 42 anos, é um exemplo do desafio que se impõe a um número cada vez maior de brasileiros: o descompasso entre a qualificação da mão de obra e o que as empresas, de fato, precisam.

Formada em letras, Patrícia começou a trabalhar aos 26 anos como assistente de diretoria em grandes empresas, como a operadora de telefonia Nextel e a fabricante de equipamentos Cummins. Há quatro anos, Patrícia investiu num MBA em gestão de negócios a fim de conquistar um cargo executivo.

O diploma até melhorou a renda: em 2013, ela foi contratada por uma correto­ra de seguros ganhando 20% mais do que no emprego anterior. Mas a desejada arrancada na carreira não veio. Patrícia segue na função de assistente. “Sou uma recepcionista de luxo: atendo telefonemas e recebo clientes”, diz. “Faço muito pouco do que aprendi na especialização em negócios.”

Assim como Patrícia, centenas de milhares de brasileiros trabalham numa ocupação inferior à qualificação que receberam ou sem relação com ela. Esse descasamento tem a ver com o ingresso recorde de profissionais com ensino superior no mercado de trabalho: foram 3 milhões de pessoas com diploma universitário entre 2010 e 2014, segundo dados da Fundação Getulio Vargas.

Esse exército enfrentou uma competição feroz por vagas compatíveis com sua escolaridade. No período, foram abertos 2,7 milhões de empregos para quem tem o ensino superior. É um cenário bem diferente do enfrentado por quem só tem o nível médio.

No período, mais de 6 milhões de postos de trabalho foram criados para quem tem essa qualificação — duas vezes mais do que o número de trabalhadores com o ensino médio que ingressaram no mercado. A inadequação da mão de obra em relação às funções está entre as causas de um problema estrutural do país cuja solução é essencial para a retomada do crescimento: a baixa produtividade do trabalho.

O indicador que mede a eficiência da mão de obra de um país é influenciado por fatores como o ambiente de negócios e o investimento na melhoria de processos produtivos. Nesses quesitos, não é novidade que o Brasil vai mal.

O país historicamente figura entre as piores posições em rankings internacionais de burocracia e investimento das empresas. O que chama a atenção é que a maior qualificação também não tem ajudado a melhorar as coisas.

Segundo um levantamento do economista Naer­cio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas da escola de negócios Insper, feito a pedido de EXAME, embora a média de anos de estudo da mão de obra brasileira tenha dobrado, de 1985 para cá, de quatro para oito anos, a riqueza gerada por trabalhador permaneceu estagnada em 18 000 dólares.

No período, a escolaridade da mão de obra na Coreia do Sul aumentou três anos. Já a produtividade do trabalho duplicou. “O investimento educacional no Brasil tem tido um retorno muito baixo”, diz Menezes Filho. “É um recurso mal utilizado.”

O que explica o descompasso? Uma hipótese é a forma como a economia brasileira cresceu na última década, a reboque do consumo no país. A inclusão de quase 48 milhões de pessoas de baixa renda na chamada “nova classe média” colaborou para a expansão de muitas empresas e para o surgimento de novos negócios — junto com isso, vieram os empregos.

Segundo dados do IBGE, dos 9,5 milhões de postos de trabalho criados de 2008 a 2013, 40% foram no setor de serviços, como as funções administrativas desempenhadas pela assistente Patrícia. Em seguida vem o comércio, que abriu um quinto das novas vagas. São atividades que geram pouca riqueza por empregado: por ano, em serviços, a média gerada é de 48 000 reais; no comércio, 33 000 reais.

Na indústria, cada empregado chega a gerar 63 000. Não se trata de uma situação estanque — nenhuma atividade econômica está fadada a ser improdutiva para sempre. Na vanguarda do agronegócio, a melhor qualificação da mão de obra, aliada ao investimento intensivo em tecnologia, permitiu avanços expressivos de produtividade em quatro décadas.

“O problema é que, nos demais setores, faltaram incentivos para adequar a melhoria educacional às demandas das empresas, a fim de tornar o trabalho mais produtivo”, diz Menezes Filho.

No plano mais amplo, o resultado é que o conjunto das empresas brasileiras tem perdido competitividade. É o caso da construção civil, responsável por 12% dos novos postos de trabalho oferecidos de 2008 a 2013. No período, a riqueza gerada por trabalhador do setor cresceu menos: 9%.

De acordo com um estudo recente do Sindicato da Construção Civil de São Paulo, o Brasil está em penúltimo lugar, numa lista de 18 países, num ranking de produtividade setorial — ainda estamos à frente da China, mas os chineses dobraram a riqueza por hora trabalhada desde 2003. Mantido o ritmo, eles ultrapassarão o Brasil em 2019.

A receita? “Lá, as instituições de ensino se preocupam em formar a mão de obra de acordo com técnicas produtivas modernas”, diz José Romeu Ferraz Neto, presidente do Sinduscon-SP. “Aqui o normal é o trabalhador aprender na própria obra.”

Deterioração

Essa dificuldade deve se intensificar. A crise econômica interrompeu a fase de ouro da criação de empregos no Brasil. Em 2015, cerca de 1 milhão de postos foram eliminados e estima-se que o mesmo tanto seja cortado em 2016.

Com as condições do mercado em rápida deterio­ração e sem praticamente nenhuma perspectiva de retomada no curto prazo, o “salve-se quem puder” deve levar ainda mais gente a aceitar qualquer tipo de emprego — inclusive no campo informal. “Esse é um problema histórico do mercado de trabalho brasileiro”, diz a econo­mista Jing Sima, do The Conference Board, um instituto de pesquisas de Washington.

“A precariedade no emprego dificulta a devida alocação dos recursos humanos e, consequentemente, reduz a produtividade.”
Resolver a inadequação da mão de obra é uma questão que passa por políticas públicas. “O primeiro passo é medir o tamanho do descolamento entre a oferta e a demanda do mercado”, diz Patricia Ellen da Silva, sócia da consultoria McKinsey.

Em 2013, a McKinsey ajudou o governo de Minas Gerais a descobrir que as escolas técnicas estaduais estavam formando jovens para ocupações pouco requisitadas. O curso de técnico de segurança do trabalho, por exemplo, tinha 5 000 estudantes matriculados a mais do que o mercado seria capaz de absorver. Na outra ponta, faltavam profissionais para áreas como eletrônica e mecânica.

Com a pesquisa, a Secretaria de Trabalho e Desenvolvimento Social de Minas (Sedese) passou a oferecer cursos com base nas demandas mais urgentes das empresas locais e reduziu a oferta daqueles cujos alunos tinham menor chance de contratação. Em 2015, foram criadas 23 000 vagas no ensi­no técnico mineiro para atender a iniciativa privada.

“Recentemente, formamos técnicos em manutenção de aeronaves para a operação da companhia aérea Azul no estado”, diz Lara Valadares, superintendente dos programas na Sedese.

No Reino Unido, o Ministério de Inovação, em parceria com a BBC, empresa pública de comunicações, mantém desde 2012 o Serviço Nacional de Carreiras, um banco de dados online com 800 carreiras, de designer gráfico a matemático especializado em análise de dados.

“É um mapa dos setores mais inovadores e com maior escassez de profissionais em cada região do país”, diz o inglês Joe Billington, diretor do serviço. Uma central telefônica coloca especialistas em recursos humanos à disposição de quem busca orientação sobre as aptidões necessárias para agarrar as vagas. Por ano, o serviço recebe 1 milhão de ligações e 20 milhões de visitantes online.

A experiência internacional mostra que a tarefa de orientar os trabalhadores a ser produtivos não depende só do poder público. Uma das receitas do governo sul-corea­no para o salto de produtividade nos anos 80 foi financiar centros de inovação em conglomerados empresariais, os chaebols.

Em 2004, a montadora japonesa Toyota escalou funcionários de diferentes unidades da empresa no mundo para apontar as competências que deveriam ser exigidas dos trabalhadores da unidade no estado americano de Kentucky. A ideia era criar um manual de instruções com foco na melhoria da eficiência na fábrica.

Esse grupo de funcionários listou 170 habilidades que passaram a guiar as contratações e os programas de qualificação da montadora. O trabalho foi o embrião da Amtec, organização de 70 escolas técnicas e montadoras nos Estados Unidos para oferecer treinamento a quem quer trabalhar no setor — muitas vezes, nas linhas de produção.

São experiências que buscam adequar a formação da mão de obra — e que dão pistas de como o Brasil pode superar seu maior desafio econômico: a baixa produtividade.

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